
Completam-se hoje 122 anos que, às 15h15 de um domingo ensolarado, a princesa Isabel assinou a Lei nº 3.353, conhecida como Lei Áurea, que libertou os escravos negros no Brasil. A Lei possuía apenas dois artigos: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil” e “Revogam-se as disposições em contrário”.
Eis que, enfim, a liberdade
Por livre e espontânea vontade, a classe dominante manteve a escravidão no Brasil durante três séculos e meio, dando prosseguimento a uma exploração obscena, bárbara e cruel. Para manter de pé o regime escravocrata, ao longo desses três séculos e meio, o país importou 4 milhões de negros africanos. Por livre e espontânea vontade, os negros não vieram para o Brasil. Não vieram à procura de riquezas. Foram arrancados de suas terras, separados de suas famílias, de suas culturas, de suas religiões. Foram trazidos sob correntes e sob golpes de chibata e jogados em terras estranhas nas mais diversas regiões do país. Isto para o negro significou deixar de ser gente para ser animal, força bruta de trabalho, manobrada pelos senhores de engenho.
Por conta disso, merece toda a ênfase a comprovação de que as leis antiescravistas são um exemplo do jogo de manipulação das elites no poder, tentando perpetuar seus privilégios, seus negócios e seus interesses. Desde logo, reconhece-se que a primeira lei que previa o fim do tráfico negreiro no Brasil, decretada no ano de 1831, foi um embuste, literalmente uma empulhação para inglês ver. O Império do Brasil, com esta lei, quis apenas dar satisfação à Inglaterra, que na época movia uma campanha internacional para pôr fim à escravatura. Tanto foi assim que a extinção do tráfico negreiro, decretada em 1831, teve de ser confirmada sob a pressão do império britânico em 1850 pela Lei Eusébio de Queiroz.
A lei de 7 de novembro de 1831 – decretada pela Assembléia Geral e sancionada pela Regência Trina Permanente, em nome do imperador Pedro II, ainda menor de idade – declara em seu artigo 1º que “todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”, excetuados os que como tais estivessem matriculados no serviço de navio pertencente a país em que a escravidão fosse permitida, ou os que tivessem entrado ou desembarcado, no Brasil, fugindo de território ou embarcação estrangeira de país escravocrata.
Por esta lei o tráfico ficava teoricamente impedido para o Brasil. Além disso, esta lei seria implementada com o tempo e se completaria, “sem precipitações ou maiores prejuízos ou crises econômicas”, com as leis que viriam, como de fato vieram, depois: a Lei do Ventre Livre (28/9/1871) e a Lei do Sexagenário (28/9/1885). Assim, planejavam os estrategistas do Império, num prazo máximo de 35 ou 50 anos, por volta de 1906 ou 1921, deixariam de existir escravos no Brasil.
Depois de decidir a cessação do tráfico negreiro clandestino, em 1850, o governo imperial retardou o quanto pôde o projeto de abolir a escravidão. Alguns historiadores garantem que foi o Ministério Rio Branco, no ano de 1871, que propôs, com a Lei do Ventre Livre, a concretização da estratégia gradualista de emancipação, que culminaria com o fim do cativeiro no Brasil. Há registros de que a crueldade do cativeiro ganhou mais força com o desumano e animalesco contrabando de escravos. A Lei Eusébio de Queiroz, que ratificou a extinção do tráfico negreiro, contribuiu para aumentar a corrupção e a importação ilegal de cativos para o Brasil. Ao que consta no livro de Jerônimo de Viveiros, após a proibição do tráfico negreiro no país, a escravaria contrabandeada para o Maranhão passou ser despejada bem longe de São Luís, onde estavam as autoridades repressoras.
Com a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que glorificou o Visconde do Rio Branco, materializou-se outra mistificação histórica: o filho de escravo nascia livre, mas permanecia escravo até os 21 anos. De acordo com informação do jornalista Edmar Morel, a Lei do Ventre Livre decorreu de um projeto do deputado cearense Silva Guimarães, que o apresentou na Assembléia Geral do Império, na sessão de 22 de maio de 1852. Da mesma forma que a Lei do Ventre Livre, a lei que mandou alforriar os escravos, com mais de 60 anos, também foi um engodo que favoreceu os escravocratas, atirando os sexagenários à rua, livrando-se, assim, da responsabilidade do sustento dos cativos. Os escravocratas concordaram em libertar os escravos que mais lhes convinham: os velhos, para que o senhor não precisasse cuidar de uma “peça” de baixa ou nenhuma produtividade.
Apesar de todo o encadeamento de lutas e aspirações, da proibição de se importar escravos, a partir de 1850, fato que debilitou sensivelmente o tráfico hediondo, da Lei do Ventre Livre, introduzindo mudanças no processo de alforria; da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, uma fração do grupo opressor, no Maranhão, resistiu como pôde, opondo uma série de entraves: eram os escravocratas, procurando, por todos os meios, manter sua posição de mando e posse e resistindo à emancipação do negro, oprimido como elemento servil.
Escravidão à deriva – A decadência do cativeiro se fez sentir duramente no Maranhão. No ano de 1885, um deputado da bancada maranhense, Francisco Dias Carneiro, proferiu um discurso na tribuna da Assembléia Geral do Império, referindo-se à Lei Eusébio de Queiroz, que ratificou a extinção do tráfico negreiro, alertando que, por conta desse “golpe que parecia decisivo, a escravidão entrou em outra fase – os africanos desapareciam, mas seus filhos os substituiriam no cativeiro e 20 anos depois sua tendência era mais para aumentar que para diminuir”. O deputado maranhense salienta que o golpe da extinção do tráfico, reafirmado em 1850, apenas pareceu decisivo, mas não o foi porque se intensificou, a partir daí, a pirataria, o contrabando, o comércio ilícito de escravos.
Tanto no Maranhão quanto no Ceará, o movimento abolicionista ganhou força com manifestos nos jornais. Daí a importância da imprensa libertadora nascida nas oficinas gráficas de São Luís e de Fortaleza, merecendo destaque O Libertador, cujo primeiro número data de 1º de janeiro de 1881, vendido a 40 réis, com formato tablóide e tinha o lema: “Ama o teu próximo como a ti mesmo. Jesus”.
O jornalista Edmar Morel se ufana em dizer que o campeão da Abolição foi o Ceará, Estado que acabou com a escravidão no dia 25 de março de 1884. Segundo ele, “povo e governo na Praça da Estação disseram chega de três séculos de crimes, quando o homem, por ser negro, fora transformado em besta”. O 25 de março de 1884 foi um grito que ecoou no Amazonas e no Rio Grande do Sul, que libertaram os cativos, respectivamente, a 10 de julho e 6 de setembro de 1884. Quatro anos depois, a princesa Isabel (1846-1921) assinou a Lei Áurea e foi proclamada “A Magnânima”, a “Mãe dos Escravos”.
Eis, enfim, o texto da Lei Áurea: “A Princesa Imperial Regente em nome do S. M. o Imperador o Sr. D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:
Art. 1º – É decretada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.
Art. 2º – Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.
(…) Dado no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da Independência e do Império”.
Portanto, o dia 13 de maio de 1888 é a data oficial da extinção do cativeiro africano no Brasil. Entretanto, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, dando liberdade imediata a todos os escravos do país, o regime escravista já se encontrava em decadência por conta do fim do tráfico negreiro, em 1850, e por conta do retorno de soldados negros da Guerra do Paraguai (1865-1870) que, vitoriosos, recusaram-se a voltar à servidão.
No livro O quilombismo – documentos de uma militância pan-africanista, o professor Abdias do Nascimento diz que o 13 de maio de 1888 representou “para aquela elite europóide o que representou para Pilatos o ato de lavar as mãos”. Abdias ressalta que a ironia da Abolição é que com ela quem se libertou foi o senhor: “libertou-se de toda e qualquer responsabilidade diante das vidas humanas que ele havia vilipendiado em função de seus latifúndios. A 13 de maio, declarou-se no papel que o negro era livre e cidadão. Livre, sim, para continuar sendo explorado pelos mesmos senhores; ou então, para se aventurar na busca de empregos numa sociedade e numa economia que o rejeitam como empregado e como cidadão. Livre para morrer, atirado à rua do desespero, sem qualquer sustento ou assistência”.
Com a abolição, o negro deixou de ser escravo, mas foi banido do trabalho remunerado. Foi banido para as favelas, para a mendicância, a criminalidade, as prisões e os hospícios. Foi banido para a destituição, a fome e a miséria. E continua até hoje na periferia do mercado de trabalho. A abolição não garantiu um padrão de vida melhor para a população negra. Transformou cerca de 780 mil trabalhadores escravos em cerca de 780 mil desempregados sem terra e sem cidadania. Ainda hoje, embora alguns índices vitais como mortalidade infantil, expectativa de vida e analfabetismo mostrem curvas de melhoria no Brasil, a maioria da população negra subsiste em condições dramáticas, massacrada pelo desemprego e por uma existência marginalizada.
Por isso, o 13 de maio – símbolo do colapso da escravidão no país – não é uma data de festa, mas de reflexão e denúncia. É uma data adequada para se refletir sobre as conseqüências do tenebroso passado escravagista do Brasil. Afinal de contas, o 13 de maio foi o símbolo do fim de uma era e o marco de uma reviravolta que viria a seguir: a substituição da monarquia pela República, sugerindo transformações de fundo no tecido social do Brasil. O braço escravo passa a ser substituído pelas máquinas. Mas, desde então, a liberdade formal não foi suficiente para resgatar da marginalidade a maioria dos descendentes de tantos povos africanos que serviram como fonte de mão-de-obra farta e barata. Portanto, a abolição, na prática, ainda não se consumou. De qualquer forma, é nessa data – o 13 de maio – que, fazendo uma exceção, no geral processo de esquecimento nacional, lembra-se um pouco a escravidão, nas escolas e nos jornais.
Ao concluir o romance Os tambores de São Luís, o escritor Josué Montello retrata o cenário do Maranhão quando o cativeiro implodiu e mostra a Abolição como “a grande festa do povo unido e vitorioso”, simbolizando o início de uma nova era. Hoje o 13 de maio é encarado de outra forma, porque o Movimento Negro, que nasceu com a utopia de justiça social, colocou em questão o gesto da suposta benevolência da princesa Isabel e combateu o conceito da Abolição apregoado na historiografia oficial como uma concessão paternalista, uma espécie de favor concedido a um povo incapaz. (Texto extraído do livro O Negro no Maranhão, do jornalista Manoel Santos Neto)
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